COMPETITIVIDADE NO PRÓXIMO MILÊNIO

Carlos de Mathias Martins
Presidente do Conselho Curador do QSP.

O convite para escrever algo sobre gestão empresarial me deixou bastante desconfortável. Senti-me como mais um entre milhares de profissionais destilando regras, lugares comuns sem, contudo, acrescentar nada de novo ao que já existe à disposição. 

Foi quando me surgiu a idéia de, a partir de fatos reais, compor um caso fictício que estimulasse a crítica de conceitos, métodos, estratégias, táticas etc.

O caso a seguir é um caldeirão de atos de gestão temperados com bastante cinismo.

Divirtam-se.

O Caso 

Carlos foi convidado a participar de um curso sobre ferramentas da qualidade, que seria realizado na própria empresa onde trabalhava. Ele, que exercia atividades de projeto, interpretou o convite como uma oportunidade de "alargamento de conhecimentos gerais", uma vez que na sua empresa havia uma diretoria específica para "assuntos relacionados à qualidade".

Ávido em agregar novas culturas em sua carreira profissional, recém-iniciada, tratou de organizar suas tarefas para estar disponível para o curso. Lá foi ele participar ativamente dos exercícios e discussões sobre os assuntos apresentados.

Embora tenha assimilado plenamente os conceitos das tais ferramentas, que aliás o instrutor frisara serem mais amplas que as "classicamente ensinadas", ele ficou encucado com a classificação da qualidade dada a essas ferramentas.

Para ele, assim classificadas, seriam de uso exclusivo de seus colegas da diretoria da qualidade.

Entretanto, Carlos observava que, no exercício de suas tarefas de projetista, ele as usava rotineiramente incorporadas ao raciocínio, tipicamente cartesiano.

Nesse aspecto, o curso foi altamente positivo, pois, no seu entender, fundamentou e disciplinou muitas de suas análises na condução de seus projetos.

Mas a classificação da qualidade ainda o perturbava. E, para esclarecer essa dúvida, ele procurou Oliveira, seu colega da diretoria da qualidade.

Oliveira, antigo profissional da área, ponderou que tais ferramentas são de uso de quem as necessite em qualquer atividade da empresa, quando na prática da qualidade. Não era, portanto, de uso exclusivo da diretoria da qualidade.

Uff que alívio, suspirou Carlos. Agora entendo por que me convidaram para o curso; eu também pratico a qualidade.

Oliveira completou: "a qualidade é incorporada nos serviços e produtos por quem os executa".

Além desses sábios esclarecimentos, Oliveira informou que o curso freqüentado por Carlos fazia parte de ambicioso plano da empresa de elevar sua competitividade no mercado mundial. Que Carlos se preparasse para participar de novos eventos de capacitação.

Carlos externou a Oliveira que achava estranho que tal intenção da empresa não tivesse uma divulgação maior, pois não vira nenhuma menção a respeito nos veículos usuais de comunicação.

Oliveira ponderou que se tratava de um plano estratégico e, como tal, estava sendo conduzido, em caráter restrito, pela diretoria da qualidade.

Carlos ficara envaidecido por estar participando desse esforço da empresa e quase se esquecera de esclarecer algumas dúvidas remanescentes sobre a classificação da qualidade. É que ele não conseguia perceber quando uma prática era da qualidade e quando não era.

Oliveira sugeriu a Carlos discutir esse assunto em outra ocasião, pois estava a caminho de uma reunião que trataria do ambicioso plano.

Carlos achou bom que continuassem essa discussão, pois outras questões o intrigavam ainda. "Se eu incorporo a qualidade quando projeto, qual é a atribuição da diretoria da qualidade ?". Bem, essas e outras questões Carlos reservou para o próximo papo com Oliveira.

À medida que o plano era implementado, Carlos era convidado a participar de cursos, seminários, workshops e muitos outros eventos culturais.

O plano estratégico Competitividade no Próximo Milênio (esse era o título) era fundamentalmente baseado na capacitação intelectual dos empregados da empresa.

O programa de eventos não deixava nada a descoberto.

Os enfoques mais atuais de gestão da qualidade estavam contemplados pelo programa. Não faltaram, por exemplo, temas sobre psicologia e antropologia e até sessões práticas de relações interpessoais, com simulações de inúmeras situações reais. Afinal, tinha-se em conta que a gestão participativa dependia de um fortalecimento do ser humano, desde seu poder criativo até seu convívio em grupo.

Outra característica do programa era que, ao seu final (previsto para 3 anos), todos os empregados agregariam novos valores à sua cultura. Ninguém ficaria fora do programa.

Carlos se entusiasmava a cada convite. Descobria e desenvolvia seu potencial criativo e se sentia, cada vez mais, compelido a participar da grande virada de sua empresa. Ele estava realmente motivado.

O programa mostrava seu êxito, pois era esse o grande objetivo de seu primeiro módulo – a mobilização.

Justamente ao concluir essa primeira etapa da capacitação, Carlos lançou-se à materialização de seu ímpeto criativo. Não se importava de não ter, ainda, esclarecido aquelas questões da qualidade com Oliveira. Talvez, tudo se esclareceria nos próximos módulos do programa. Agora, ele se sentia capaz de melhorar alguns procedimentos de seu trabalho.

Logo no início do expediente de uma segunda-feira, Carlos debruçou-se sobre sua criação. Tinha uma idéia bem clara do que melhorar, mas não conseguia estruturar satisfatoriamente as ações para realizá-la. "Devo descrevê-las num texto ? Longo ? Curto ? ... Prazos ... Custos etc".

Outros complicadores surgiram: as modificações implicariam em mudanças nas atividades de outros setores além do seu.

Mas Carlos estava muito motivado para esmorecer. Além de tudo, ele via, nitidamente, que sua proposta traria ganhos para a empresa. Assim motivado, colocou num papel toda sua criação.

O próximo passo seria partir para a implementação. Nova complicação. Ele não tinha autoridade hierárquica para implementar mudanças.

Carlos procurou então seu chefe para expor sua proposta.

Surpreendeu-se ao saber que Aldo, seu chefe, já sabia que ele estivera trabalhando em algo fora de suas rotinas e que não se mostrava muito satisfeito.

"Mas Aldo, o estímulo à criatividade foi o que mais me tocou nos cursos oferecidos pela empresa", reagiu Carlos. "Acontece que essa turma da qualidade não me perguntou que tipo de capacitação nós precisamos para melhorar nossos projetos", retrucou Aldo. Além disso, nessa empresa, os chamados projetos de melhoria são discutidos e propostos pelas turmas do planejamento e da qualidade em outubro de cada ano".  

Por melhor que seja sua proposta, não há nenhuma diretriz para seu encaminhamento", concluiu Aldo.

A essa altura Carlos já desistira de sua proposta. Pior ainda, começava a questionar a validade do tão fabuloso programa de capacitação. Mas sua postura pró-ativa o levava a acreditar que ainda poderia tentar levar adiante sua proposta. "Vou procurar o Oliveira", pensou ele. "Afinal, sua diretoria conduz a implantação das mudanças". 

E assim, à revelia de Aldo, Carlos programou uma reunião com Oliveira. Este até pensou que fosse para discutir a questão da qualidade. "Não, Oliveira, falaremos sobre isso em outra ocasião. Agora quero tratar de algo substantivo. Tenho uma proposta de melhoria de alguns procedimentos de projeto e queria saber os trâmites para implementá-los". 

Visivelmente incomodado, Oliveira passou a explicar como as mudanças eram implementadas na empresa. 

"Um grupo, formado por profissionais do planejamento e da diretoria da qualidade, prepara um conjunto de propostas, baseadas em dados relativos à empresa e ao mercado, compilados por eles. Essas propostas são discutidas naquelas reuniões anuais realizadas em outubro, com a participação de toda a alta direção. Discutidas e consolidadas, as propostas apresentadas resultam nos planos de curto e longo prazos. Desses planos, definimos os chamados projetos, que serão implementados nas áreas contempladas, como na sua, por exemplo", concluiu Oliveira. 

"Como ficam, então, as contribuições como a minha ? Não há mecanismos formais para aproveitá-las ?", perguntou Carlos. 

"Informalmente posso levar sua proposta adiante, embora corro o risco de, pelo precedente, desencadear uma avalanche de sugestões na empresa", conclui Oliveira. 

"Repito, com a mesma indignação, minha pergunta feita ao Aldo. Para que nos capacitar e estimular a criar, se as regras da empresa não contemplam mecanismos para realizar nossas criações ?", reagiu Carlos.  

"Não é bem assim", contestou Oliveira. "Afinal, nós da qualidade e do planejamento, estamos constantemente observando o andamento das coisas, e aí colhemos os dados para nossas propostas". 

Num tom de fim de conversa, Carlos esboçou sua frustração, vaticinando um melancólico fim do fabuloso programa de capitação. "Oliveira, poupe-me de futuros cursos, workshops etc". 

Um tanto desconfortável, Oliveira ainda tentou elevar o clima propondo a Carlos discutir a questão da qualidade

"Obrigado, Oliveira", e, em tom enigmático, concluiu: "creio que a causa de tudo que discutimos até agora é justamente a classificação da qualidade". 

Um número crescente de histórias como as de Carlos levou a uma drástica redução de participantes nos eventos de capacitação. 

Antes de completar um ano, o programa abortou. 

Mas, como ele era o mecanismo fundamental para levar adiante o plano Competitividade no Próximo Milênio, a empresa teve que repensar toda sua estratégia e . . . bem, essa é outra história.