Novembro/2000

ISO 9000:2000

CRIANDO UM SISTEMA DA QUALIDADE BASEADO EM PESSOAS
(e não em documentos)

Peter Merrill
Strider International (Canadá)

Este artigo relata a experiência de uma empresa com a documentação do seu sistema da qualidade, refletindo uma situação comum a várias organizações ao redor do mundo: a escolha de uma única pessoa dentro da empresa para escrever políticas, procedimentos e instruções de trabalho, criando-se assim uma total confusão burocrática.

É para solucionar esse problema que apresentamos a nova norma ISO 9000:2000, estruturada de acordo com as reais necessidades de uma empresa. A nova ISO 9000 exige que a liderança da organização, primeiramente, estabeleça objetivos para efetuar a entrega ao cliente e, depois, forneça recursos para que as empresas possam atingir esses objetivos. Assim, todos na organização passam a ter a responsabilidade de gerenciar a entrega do produto ou serviço ao cliente, visando alcançar os objetivos originais. Medindo, então, a eficácia dessa entrega, a empresa é levada a alterar e melhorar seus processos.

Descreveremos, a seguir, a estratégia para a implementação da nova Norma, demonstrando a necessidade de que, em primeiro lugar, a liderança estabeleça objetivos sob a forma de políticas e, em seguida, envolva as pessoas no desenvolvimento de procedimentos. A busca de um consenso em relação aos procedimentos e posteriores instruções de trabalho apresenta-se como o melhor investimento que uma organização pode fazer para a melhoria dos negócios. Dessa forma, torna-se possível a transformação de um sistema da qualidade baseado em documentos em um sistema baseado em pessoas.

COMO SE ORIGINA A DOCUMENTAÇÃO (E A FRUSTRAÇÃO)

João Roberto trabalhava em uma unidade de negócios de uma empresa que está entre as "500 Melhores". Certo dia, seu chefe o chama e comunica que seu setor deveria ser certificado pela ISO 9001, acrescentando que João era a pessoa indicada para ser o "Representante da Administração" e para "fazer acontecer". Ele teria total autoridade para perguntar qualquer questão para qualquer pessoa que pudesse ajudá-lo "a escrever o manual".

A primeira tarefa de João foi bem simples: criar um "manual de políticas", ou seja, ele teria que conseguir uma cópia da Norma ISO 9001, sublinhar a palavra "deve" sempre que ela aparecesse e, depois, substituí-la pelo verbo na 3ª pessoa do plural, tal como uma "promessa de escoteiro". Esse parecia ser o método utilizado por aqueles que ofereciam "manuais-disquetes" em propagandas em revistas da qualidade. Imediatamente, João aceitou a incumbência e o gerente geral assinou um documento detalhado, contendo a descrição do que a sua unidade fazia.

A próxima tarefa de João foi redigir uma série de "procedimentos", descrevendo como as atividades exigidas pela Norma eram realizadas em sua empresa. Foi aí que a situação complicou.

Sua primeira dificuldade foi "captar" a maneira como eram desenvolvidos os processos. Ao fazer a pergunta "como você realiza o seu trabalho?", a primeira reação do pessoal da empresa, que tinha a fama de cortar desperdícios, foi totalmente natural: "esse cara vai eliminar a minha função", pensaram.

Contudo, trabalhando já há bastante tempo na companhia, João era considerado um amigo de confiança; por isso, mesmo com um certo receio, algumas pessoas descreveram suas atividades. Porém, muitas se esqueceram de citar importantes passos dessas atividades, embora grande parte delas estivesse bastante familiarizada com seu trabalho. Mesmo as pessoas que confiavam em João, suspeitavam de que tais informações pudessem ser usadas para avaliar o desempenho delas.

Quando o manual ficou pronto, a última tarefa de João foi auditar os procedimentos que ele havia escrito! Ao pedir às pessoas para "dizer o que fazem", João comparou as respostas das pessoas com os procedimentos escritos por ele, a fim de verificar se cada um realmente "faz o que diz". O resultado foram inúmeras discrepâncias. A explicação era sempre a mesma: "esqueci!". João sabia que, na verdade, não haviam contado a ele o que consideravam ser de conhecimento pessoal, pois era isso que protegia sua posição na empresa. Assim, João viu-se envolvido numa enxurrada de revisões e mais revisões após a primeira, segunda e terceira auditorias.

Entretanto, João não se dava por vencido (afinal, fora exatamente por isso que havia sido escolhido para a tal tarefa). Esforçando-se ao máximo, conseguiu finalmente preparar a companhia para a certificação. As políticas e os procedimentos foram submetidos ao organismo certificador e, graças à atenção dada por João aos mínimos detalhes, fazendo com que todos atendessem aos requisitos da Norma, o manual foi aprovado.

MAS O QUE DEU ERRADO, AFINAL?

Se o manual da qualidade elaborado por João estivesse de acordo com a Norma, mas não estivesse sendo seguido, de nada adiantaria, pois as atividades estariam sendo executadas da maneira errada! Por isso, cada pessoa precisou ser muito bem treinada a fim de seguir os procedimentos. Também foi necessário que a Administração se empenhasse dia e noite com a revisão para assegurar que todos haviam realmente compreendido o manual.

Assim, com esforços sobre-humanos, a empresa foi finalmente recomendada para a certificação. Mal se podia acreditar... haviam conseguido! João, é claro, sentiu-se extremamente aliviado. Mas, agora que o manual estava pronto, seu trabalho já não seria mais necessário. Por isso, deixou a empresa!

Porém, após seis meses, o manual, que todos haviam se empenhado tanto em seguir, não apresentava qualquer relação com aquilo que realmente estava acontecendo na empresa, ou seja, tornara-se inútil. O sistema da qualidade não era mais o mesmo.

Se essa história verídica lhe pareceu familiar, você deve estar se perguntando se realmente vale a pena continuar com a sua certificação, ou, então, se existe a possibilidade de escapar do pesadelo das revisões em que você se envolveu.

ISO 9000:2000 - A SOLUÇÃO PARA O SEU PROBLEMA

É possível resolver o problema do seu sistema da qualidade, mas não sem antes alterar drasticamente sua visão acerca da ISO 9000 e as atividades realizadas no SGQ. A novidade é que com a nova ISO 9000 será mais fácil fazer a mudança para um sistema baseado em pessoas do que com a antiga Norma.

O primeiro passo para ser bem-sucedido nessa tarefa é compreender o papel que cada um exercerá, primeiramente, no desenvolvimento e, posteriormente, na operação do sistema da qualidade. O segundo passo é utilizar a nova Norma para definir as funções que cada um deverá desempenhar.

O papel de um líder na empresa compreende: 1) estabelecer objetivos e organizar as pessoas que estarão encarregadas de alcançá-los; 2) fornecer recursos para que cada um possa exercer adequadamente sua função; 3) gerenciar a entrega ao cliente de maneira que os objetivos sejam alcançados; e 4) monitorar a consecução dos objetivos, fazendo as melhorias necessárias.

Um Sistema de Gestão da Qualidade baseado na ISO 9000:2000 dará ao líder a estrutura necessária para realizar essas quatro ações. A nova Norma fornece uma lista de procedimentos básicos possíveis de ser executados por qualquer empresa bem administrada, a fim de assegurar que o cliente receba tudo o que lhe foi prometido.

Muitos líderes têm se esquecido da importância do seu papel no estabelecimento de objetivos ao iniciar o desenvolvimento do SGQ de sua empresa. Porém, não é totalmente sua culpa. O termo "manual de gestão", utilizado nas normas ISO 9000, tem levado muitos líderes a se esquivarem da tarefa que lhes pertence. Talvez se esse termo fosse substituído por "manual de objetivos", muito mais atenção seria dada a essa tarefa.

Se a liderança também envolvesse seu pessoal primeiramente na descrição de como atingir esses objetivos, seria desenvolvido um sistema da qualidade "participativo", e não "imposto".

A seguir, descreverei a seqüência da ISO 9000:2000, indicando, em cada etapa, os números das subseções correspondentes. Por fim, apresentarei de maneira breve uma estratégia que poderá ser seguida por aqueles que quiserem implementar a nova Norma.

QUAIS AS EXIGÊNCIAS DA ISO 9000:2000?

A ISO 9000:2000 inicia-se atribuindo à liderança da organização a clara responsabilidade de definir os objetivos referentes à qualidade e ao atendimento aos requisitos do cliente (5.1). Esses requisitos devem ser primeiramente identificados e, então, acordados (5.2). O comprometimento com o cliente deve ser escrito sob a forma de política (5.3). Uma vez que esses objetivos tenham sido estabelecidos, deve-se planejar como alcançá-los.

Para tanto, é necessário, antes de tudo, que a organização defina seus objetivos, deixando a cargo da liderança o planejamento de como alcançá-los (5.4) e conscientizando a todos na empresa sobre sua responsabilidade em cumprir o plano (5.5).

A organização deve ter alguém responsável por esse sistema, que seria, no caso, o Representante da Administração. Sua tarefa consiste em gerenciar o desenvolvimento do Sistema de Gestão da Qualidade antes de sua certificação pela ISO 9000 e, posteriormente, informar à liderança acerca do desempenho do sistema.

Também as outras pessoas da organização devem ser conscientizadas sobre o desempenho da companhia com relação à realização de seus objetivos.

Em seguida, deve-se descrever claramente todas as atividades ou "processos" da organização, a fim de que todos na companhia saibam como realizar suas atividades. Tal descrição deve ser feita sob a forma de procedimentos escritos, que possam ser seguidos no caso de dúvida quanto à maneira de realizar uma determinada tarefa.

As políticas e procedimentos do sistema devem ser constantemente atualizados, a fim de que se possa ter certeza da utilização de uma versão atualizada, e os registros criados devem ser mantidos em condições seguras.

A liderança desempenha um importante papel em assegurar a eficácia do sistema. Para tanto, deve conduzir regularmente uma análise crítica do desempenho do SGQ, pela qual poderá identificar a necessidade de alterações e alocar os recursos necessários para as mesmas. O processo de análise crítica é bastante semelhante à análise crítica financeira do negócio (5.6).

Os recursos alocados podem incluir pessoas, desenvolvimento de habilidades ou alterações de equipamentos e instalações (6.1, 6.2, 6.3, 6.4).

Os processos que serão utilizados para identificar os requisitos do cliente e efetuar a entrega do produto ou serviço solicitado pelo cliente devem ser planejados de maneira a assegurar que o cliente receba aquilo que lhe foi prometido (7.1).

REALIZAÇÃO DE PRODUTOS E SERVIÇOS

Primeiramente, os requisitos do cliente devem ser claramente especificados e acordados. Em seguida, a organização deve assegurar que possui a capacidade de atender aos pedidos antes de aceitá-los. Durante o subseqüente relacionamento da empresa com o cliente, a organização deve manter uma efetiva comunicação com o mesmo e proteger quaisquer produtos ou informações fornecidos por ele (7.2).

Caso o cliente solicite o projeto de um único produto ou serviço, a empresa deve planejá-lo de maneira apropriada. Deve haver controles para assegurar que todos os requisitos do cliente sejam atendidos (7.3).

Em seguida, os produtos e serviços adquiridos de fontes externas, para possibilitar a realização e entrega de produtos e serviços ao cliente, devem ser gerenciados a fim de assegurar que sejam entregues à organização dentro do prazo determinado e de acordo com a devida especificação (7.4).

As principais operações da empresa, que agregam valor ao cliente, devem então ser realizadas de maneira que possibilitem uma entrega correta logo na primeira vez. Para tanto, deve-se dar claras instruções de trabalho, manter um bom ambiente e conservar os equipamentos em boas condições. Os próprios processos devem ser monitorados, a fim de assegurar o desempenho esperado (7.5), e o produto/serviço deve ser acompanhado em todos os estágios e manuseado de maneira que não haja perda ou dano. Sempre que forem utilizados instrumentos para monitorar os processos ou produtos, deve-se calibrá-los a fim de assegurar resultados confiáveis (7.6).

A MEDIÇÃO COM VISTAS À MELHORIA

Por fim, tanto o SGQ como os processos da empresa devem ser monitorados, a fim de assegurar que o seu desempenho esteja de acordo com o planejado (8.1).

O monitoramento do sistema e dos processos deve ser utilizado para levar a empresa à melhoria contínua (8.1).

A última medida que possibilita conhecer a eficácia do Sistema de Gestão da Qualidade é o nível de satisfação do cliente. A medida preventiva é alcançada através da auditoria interna dos processos do sistema. As auditorias internas independentes, exigidas pela Norma, devem ser suportadas pela monitoração contínua de processos individuais sempre que estes forem essenciais para a realização da entrega final (8.2).

Se por acaso algum requisito não for atendido, o produto ou serviço deverá ser isolado, e a organização deverá decidir se será necessário ou não retrabalhá-lo (8.3).

Para tanto, os dados coletados a partir da atividade de medição devem ser analisados, e os resultados da análise utilizados para fazer a melhoria do SGQ e dos processos individuais (8.4).

Por último, são identificadas as alterações necessárias através de um processo definido de ação corretiva, que com o tempo se transformará em ação preventiva, possibilitando a eliminação de problemas de maneira proativa, e não reativa. O resultado final é a melhoria contínua tanto dos processos de negócios como do Sistema de Gestão da Qualidade da empresa (8.5).

UM SISTEMA BASEADO EM PESSOAS

O primeiro passo para desenvolver qualquer sistema na empresa é que os líderes cheguem a um acordo quanto aos objetivos a serem alcançados. Na ISO 9000, isso não significa concordar apenas com a política geral, mas também com os objetivos de cada elemento do SGQ.

Eis um importante princípio que você deve ter em mente ao desenvolver seu sistema da qualidade: a ISO 9000 foi criada para fazê-lo pensar. Se você não tem refletido sobre a sua empresa, pode ter certeza que terá problemas no futuro.

Por exemplo, numa organização que possui a seguinte política: "a Administração fará uma análise crítica da eficácia do Sistema de Gestão da Qualidade pelo menos uma vez por ano", provavelmente, os líderes não pensaram em seu SGQ ao escrevê-la, nem compreendem seu papel na operação do mesmo. Segundo Joseph Juran (1989), "você planeja e gerencia a qualidade da mesma forma que planeja e gerencia suas finanças". Se sua organização está planejando e gerenciando suas finanças apenas uma vez por ano, com certeza, sua ela está com sérios problemas. Da mesma forma, se você estiver planejando e gerenciando a qualidade de sua empresa apenas uma vez por ano, considere-se em grandes apuros.

É necessário que os líderes entrem em acordo quanto às regras e objetivos da análise crítica e os coloquem no papel. Se eles tiverem dificuldade em fazer isso, pode ter certeza que a sua empresa terá problemas. Essa abordagem é válida para todos os outros elementos da Norma.

Por exemplo, assim que a política de aquisição for especificada, o principal comprador da empresa deverá examinar o requisito da ISO referente à avaliação e seleção de fornecedores e redigir as regras para sua unidade sobre esse assunto. A menos que o gerente da qualidade seja o comprador, não há como solicitar-lhe que realize essa tarefa.

A empresa deve aplicar esse mesmo enfoque para todos os elementos da Norma, ou seja, o responsável por vendas deve especificar a política para as questões relacionadas ao cliente, o responsável por operações deve especificar a política para os "assuntos operacionais", e assim por diante.

Conforme os líderes forem realizando esse processo reflexivo, estarão identificando as atividades que a empresa realiza bem, as atividades que poderiam ser melhor executadas e as atividades que não são realizadas de forma alguma.

Mesmo quando as políticas estiverem finalmente escritas, a liderança deverá investir tempo para assegurar a sua consistência. E isso não deve ser feito por uma pessoa isolada, mas por todos os líderes em conjunto.

Assim, com a reflexão e a análise do que falta para atender aos requisitos da Norma, surge o plano de ação para o restante do pessoal. É importante ressaltar que, além de criar o plano, a liderança assume a responsabilidade pelo mesmo. Cada líder saberá qual a pessoa mais indicada na organização para descrever as várias atividades exigidas pela ISO 9000 para:

  • avaliar o desempenho do fornecedor;
  • fornecer treinamento;
  • identificar os requisitos do cliente;
  • analisar criticamente o desempenho do SGQ; e
  • analisar criticamente todas as outras atividades do sistema.

Algumas dessas atividades deverão ser descritas pelos próprios líderes, porém a maioria delas deverá ser descrita pelos gerentes e líderes de equipes. Lembre-se da experiência de João Roberto. As atividades devem ser descritas pelas próprias pessoas que as realizam, seja num flip chart, num quadro branco ou de qualquer outra forma. Chegar a um consenso quanto às melhores práticas leva tempo, mas é exatamente isso que fará com que a empresa aumente o seu lucro e pare de desperdiçar tempo.

A ISO 9000 não consiste de diretrizes para escrever um manual, mas em diretrizes para a criação de um sistema eficaz. O manual é apenas um conjunto de instruções sobre como operar o sistema. A ISO 9000 foi projetada para fazê-lo pensar, e escrever procedimentos faz com que você pense. Pascal, um filósofo francês do século XVI, demonstrou certa vez a importância de somar a necessidade de reflexão à necessidade de evitar documentação em excesso. Ao terminar de escrever uma carta para um amigo, Pascal percebeu que havia escrito mais do que pretendia. Então, ao final da carta, fez a seguinte observação: "Desculpe pela extensão da carta, não tive tempo para escrever uma menor".

O resultado desse envolvimento, primeiro da liderança e, depois, dos funcionários, será um sistema da qualidade projetado pelas pessoas e para as pessoas. Dessa forma, não haverá mais a necessidade de treinar pessoas como se fossem cães adestrados. Além disso, a nova Norma produz um desejo natural pela melhoria dos processos e pela busca da melhoria contínua.

Texto traduzido por Marily Tavares Sales, do QSP.