Abril/1997

DA REPARAÇÃO DE DANOS AOS SISTEMAS DE GESTÃO

Francesco De Cicco
Diretor-Executivo do QSP

A evolução da prevenção

Se voltarmos à época da Revolução Industrial, verificaremos que havia fundamentalmente uma preocupação na reparação de danos à saúde e integridade física dos trabalhadores. Praticamente não se pensava em nenhuma ação, atitude ou medida de prevenção. Isso começou a ficar caracterizado por volta de 1926, através dos estudos de H.W. Heinrich, que trabalhava em uma companhia americana de seguros e pôde observar com bastante nitidez o alto custo que representava para a seguradora reparar os danos decorrentes de acidentes e doenças do trabalho. Ele então desenvolveu uma série de idéias e de formas desses problemas serem gerenciados dentro das empresas, privilegiando a prevenção acima de tudo. Ele pode ser considerado o precursor, o pai do prevencionismo, por assim dizer.

Em 1966, o também norte-americano Frank Bird Jr. propôs um novo enfoque para as questões de segurança e saúde, a partir da idéia de que a empresa deveria se preocupar não somente com os danos aos trabalhadores, mas também com os danos às instalações, aos equipamentos, aos seus bens em geral. Ele chamou a esse enfoque de Loss Control, ou Controle de Danos, com o objetivo de dar uma abrangência maior a tais questões, tendo em vista que as causas básicas dos acidentes eram (e são) as mesmas. Ou seja, um acidente com ou sem lesão provém da mesma origem humana ou material.

Quatro anos depois (1970), ampliando um pouco a extensão do enfoque de Frank Bird Jr., o canadense John Fletcher deu outra designação a essas idéias, acrescentando a palavra "total": Controle Total de Perdas, ou Total Loss Control, incrementando o escopo proposto à época por Frank Bird Jr., no sentido de englobar também as questões de proteção ambiental, de segurança patrimonial e de segurança do produto. Sua proposta é, portanto, originária do mesmo enfoque dado pelo norte-americano.

Paralelamente a tudo isso, foram desenvolvidas diversas ferramentas para auxiliar, principalmente, na identificação e avaliação de riscos, através de metodologias vindas dos programas aeroespaciais americanos, às quais se deu a designação de Engenharia de Segurança de Sistemas. O precursor dessas metodologias na área civil (já que eram utilizadas basicamente na área militar), foi Willie Hammer, do qual somos seguidores muito próximos. Nesse sentido, tivemos a oportunidade de fazer um pequeno livro, intitulado "Introdução à Engenharia de Segurança de Sistemas", editado pela FUNDACENTRO em 1978 e que, durante muitos anos, foi utilizado como material de apoio da disciplina de mesmo nome dos cursos de especialização de engenheiros de segurança do trabalho. Já foram tiradas várias edições desse livro que, enfim, é uma contribuição viva até hoje, na medida em que essas técnicas são bastante utilizadas nas áreas de qualidade (FMEA, por exemplo), de meio ambiente e de segurança e saúde. São hoje conhecidas como técnicas de análise de riscos, mais do que a própria denominação original (Engenharia de Segurança de Sistemas).

É importante destacar também a idéia que surgiu por volta de 1950, principalmente na Europa e nos Estados Unidos, no sentido de as empresas poderem reduzir suas despesas com seguros, se aumentassem seu grau de proteção frente a riscos. A essa idéia básica de aumentar a proteção e diminuir as despesas com seguros, deu-se o nome de Gerência de Riscos. Tivemos a oportunidade de participar de diversos trabalhos nessa área, porque era uma forma de incentivar as organizações a tomarem medidas efetivas para reduzirem seus níveis de risco com acidentes (com e sem lesão). Infelizmente, como a área de seguros tem um papel importante nesse contexto, esbarramos com a estrutura do sistema segurador brasileiro, que sempre foi bastante estatizado e rígido. Hoje, estamos tendo uma flexibilização maior. Temos um exemplo muito claro no próprio seguro de acidentes do trabalho; sabemos que é estatizado, mas o mais preocupante é que se trata de um sistema "burro". Tanto faz ser estatal ou privado. Esse sistema que está aí é "burro", na medida em que dá o mesmo tratamento para as empresas, quer elas invistam em prevenção, quer elas não cuidem desse assunto. Basicamente, em função do setor de atividade, todas as empresas desse setor pagam o mesmo prêmio de seguro de acidentes do trabalho, não importando se uma organização expõe mais do que outra seus trabalhadores a determinados riscos. Uma empresa que investe em segurança, portanto na proteção de seus recursos humanos, não tem assim nenhum diferencial, nenhum benefício financeiro em relação a outra que não faz prevenção. Em função dessas questões relacionadas ao seguro, vários enfoques relacionados à Gerência de Riscos foram sendo introduzidos, o que acarretou uma dispersão do assunto, que existe até hoje.

Finalmente, por volta de 1988, começamos a perceber que as questões relacionadas à qualidade estavam levando algumas empresas de "classe mundial" a fomentar também o desenvolvimento de ações efetivas de proteção ambiental e de segurança e medicina do trabalho.

A seguir, veremos em maiores detalhes como está se concretizando a integração das áreas de qualidade, meio ambiente e segurança e saúde.

SEGURANÇA E SAÚDE NO TRABALHO
EVOLUÇÃO

  • Reparação de danos à saúde e integridade física dos trabalhadores
  • Prevenção de acidentes e doenças do trabalho
  • Controle de danos (Frank Bird)
  • Controle Total de Perdas (John Fletcher)
  • Engenharia de Segurança de Sistemas (Willie Hammer)
  • Gerência de Riscos (diversos enfoques).

Sistemas de Gestão

Hoje, podemos tranqüilamente afirmar que o que irá impulsionar a área de segurança e saúde no trabalho é o enfoque dos Sistemas de Gestão, principalmente daqueles que puderem ser certificados por um organismo independente (chamado organismo certificador de terceira parte) devidamente credenciado, quer seja para a área da qualidade, quer seja para a área de meio ambiente, ou para a área de segurança e saúde no trabalho. Essa idéia de Sistemas de Gestão que possam ser certificados, isto é, que a empresa possa demonstrar perante terceiros que atende a uma determinada norma, especialmente se essa norma for internacional, está ganhando corpo e estamos vendo isso se materializar no mundo todo, cada vez mais.

Vamos rapidamente recapitular a definição do que é um Sistema, pois iremos nesta série de artigos sempre focar as empresas como tal.

A EMPRESA COMO SISTEMA

Um sistema é um arranjo ordenado de componentes que estão inter-relacionados e que atuam e inter-atuam com outros sistemas para cumprir um determinado objetivo. Se olharmos a empresa a partir dessa definição, veremos que ela é um arranjo de recursos humanos, recursos materiais e recursos financeiros, para atingir o objetivo de atender às expectativas, às exigências de seus clientes e consumidores, do mercado em geral. Esse mercado, de forma contínua, retroalimenta a organização, dando-lhe subsídios que influenciarão as suas operações. Existem também fatores externos que contribuem ou interferem diretamente no desempenho da organização, como as ações e leis desencadeadas pelo governo (municipal, estadual e federal); problemas, relacionados à energia, matérias-primas, fornecedores etc. A própria comunidade é outro fator externo que deve cada vez mais ser considerado, tanto nas questões de meio ambiente como nas questões de segurança e saúde (e também nas de qualidade).

Essa visão sistêmica, que prosperou na década de 70, aplica-se perfeitamente até os dias de hoje. Diante disso, por extensão, a própria definição de Sistemas de Gestão fica bastante clara. Para tanto, podemos recorrer a uma norma internacional, fazendo uma pequena adaptação da ISO 8402, que dá a terminologia básica utilizada na área da qualidade e que pode ser perfeitamente expandida (como de fato tem sido) para as outras questões que estamos tratando aqui. Então, um Sistema de Gestão pode ser definido como a estrutura organizacional, as responsabilidades e os procedimentos, processos e recursos para uma organização implementar a sua gestão da qualidade, a sua gestão ambiental ou a sua gestão da segurança e saúde no trabalho. Dependendo do foco que desejarmos, teremos o nosso Sistema de Gestão perfeitamente caracterizado.

SISTEMAS DE GESTÃO
DEFINIÇÃO

A estrutura organizacional, as responsabilidades e os procedimentos, processos e recursos para a implantação da

Gestão da Qualidade;
Gestão Ambiental;
Gestão da Segurança e Saúde no Trabalho.

Em termos evolutivos, a Grã-Bretanha tem sempre saído na frente em relação às normas sobre Sistemas de Gestão, em que uma empresa pode comprovar perante terceiros que tem um sistema de gerenciamento que se adequa, que está em conformidade com determinada norma. A BS 5750, sobre Sistemas da Qualidade, foi publicada em 1979 pela British Standards Institution, a BSI, que é o organismo normalizador que produz as normas na Grã-Bretanha. Essa norma deu origem à série ISO 9000 que foi oficialmente editada em 1987, tendo sofrido uma primeira revisão em 1994 e estando prevista uma segunda, mais profunda do que a primeira, em 1999. A mesma história (só que em um prazo mais curto) está se repetindo para os Sistemas de Gestão Ambiental. A Grã-Bretanha também saiu na frente com a BS 7750, norma editada em 1992 e revisada em 1994.

Já existem, no mundo, mais de 200 empresas certificadas pela BS 7750. Essa norma é a base da série ISO 14000, cujas cinco primeiras normas sobre Sistemas de Gestão e Auditoria Ambiental foram publicadas no final de 1996.

Na área de Segurança e Saúde no Trabalho, a BSI editou a BS 8800, que é o tema central desta série de artigos.

O mais importante a destacar neste momento é que, tanto a BS 7750/ISO 14000 como a BS 8800, propositalmente, foram preparadas para serem "acopladas" ou serem uma extensão da ISO 9000. Essa integração é até óbvia, porque estamos falando de Sistemas de Gestão, e muitos de seus elementos, como iremos ver adiante, são comuns a todos eles.

Iso 9000: benefícios para a área de Segurança e Saúde

Poucos sabem que ISO é a sigla da International Organization for Standardization (Organização Internacional para a Normalização), entidade não-governamental que elabora normas sobre diversos assuntos. Com sede em Genebra, na Suíça, integram a ISO entidades de normalização de cerca de 120 países, representando mais de 95% de toda a produção mundial. O Brasil participa da ISO através da ABNT - Associação Brasileira de Normas Técnicas.

As normas ISO série 9000 (ou simplesmente ISO 9000) são um conjunto de padrões relacionados à gestão e garantia da qualidade. As principais normas que compõem atualmente essa série são a ISO 9000 - parte 1, ISO 9001, ISO 9002, ISO 9003 e ISO 9004 - partes 1 e 2. Esquematicamente, essas normas podem ser representadas da seguinte forma:

A certificação de sistemas da qualidade de empresas é feita através das ISO 9001, 9002 ou 9003, sendo as mesmas utilizadas em auditorias de 2a parte (realizadas por clientes) ou de 3a parte (realizadas por terceiros). As ISO 9004 não são usadas em auditorias; devem ser entendidas apenas como um conjunto de recomendações para a empresa.

Mas, o que tem levado um número cada vez maior de organizações brasileiras a adotar as normas ISO 9000? A resposta a essa questão é bastante simples: as empresas querem mercados. Ou, em outras palavras, não querem que problemas barrem seu acesso aos mercados europeu, norte-americano e outros, e ao próprio mercado interno.

Sem dúvida alguma, todo esse processo é irreversível. E está se alastrando por todos os setores de nossa economia.

Para você pensar: Daqui a quanto tempo, no Brasil, os clientes dos fabricantes de EPIs estarão exigindo que os sistemas da qualidade dos mesmos sejam certificados pela ISO 9000 (independentemente de seus produtos terem os respectivos CAs)? Não esquecer que as ISO 9001, 9002 e 9003 especificam requisitos para que, através de ações gerenciais, as empresas possam assegurar a qualidade de seus produtos. Esses requisitos enfatizam a prevenção de problemas ou de situações indesejáveis nos processos operacionais dos fornecedores.

Imagine só: nessa perspectiva futura, se as características técnicas e os preços dos EPIs forem próximos entre si, de qual empresa você os compraria, de um fabricante certificado pela ISO 9000, ou de outro não-certificado?

Se uma empresa adotar as normas ISO 9000 e dispuser de documentação que comprove isso, ela terá como demonstrar que administra com qualidade e que, portanto, garante a qualidade dos produtos e serviços que ela fornece.

Essa demonstração de que seus produtos e serviços têm qualidade assegurada, de forma planejada e sistemática, pode ser dada aos atuais e futuros clientes da empresa, ou à justiça, no caso de eventuais reclamações de clientes ou consumidores.

São inúmeros os benefícios que a adoção da ISO 9000 pode trazer para uma empresa, para seus funcionários e clientes, para o meio ambiente e para a sociedade em geral. No quadro a seguir, destacamos os principais.

ISO 9000
Beneficiados Benefícios
Empresa - Redução de riscos de:
  • perda de imagem e reputação;
  • perda de mercado;
  • responsabilidade civil;
  • queixas e reclamações.
- Redução de desperdícios e custos:
  • por refugos na produção;
  • por reprocessamentos, reparos e retrabalhos;
  • por reposições.
- Melhoria da produção e da competitividade.
- Maior satisfação dos clientes.
- Maior participação no mercado e maiores lucros.
Funcionários - Menos conflitos no trabalho e maior integração entre os setores da empresa;
- Menor probabilidade de acidentes do trabalho;
- Maiores oportunidades de treinamento;
- Melhores condições para acompanhar e controlar os processos;
- Melhor desempenho individual em cada tarefa;
- Melhoria da qualidade e da produtividade, gerando reconhecimento e recompensas.
Clientes - Redução de riscos de:
  • acidentes e danos à saúde;
  • insatisfação com o produto ou serviço;
  • indisponibilidade do bem ou serviço adquirido.
- Redução de custos de paralisação, de ações para solucionar problemas, de operação e de aquisição.
- Maior confiança e satisfação em relação  aos produtos e serviços adquiridos.
Meio Ambiente e Sociedade - Redução de riscos de:
  • poluição;
  • acidentes ambientais.
- Menor consumo de energia.
- Menor desperdício.
- Atividade empresarial em condições competitivas no mercado nacional  internacional, gerando o desenvolvimento da nação, que se traduzirá em benefícios para toda a sociedade.

As normas ISO 9000 não contêm especificações de produtos. Os requisitos por elas estabelecidos são direcionados a procedimentos gerenciais e práticas empresariais.

Se os requisitos da ISO 9000 forem atendidos, aumenta a confiança na conformidade (qualidade) dos produtos e serviços fornecidos pela empresa. Os funcionários continuam a fazer o mesmo trabalho que faziam antes, mas as rotinas operacionais de cada área ficam melhor integradas, facilitando a execução das tarefas e a difusão de informações na empresa. Com a elaboração de procedimentos específicos para cada atividade, a forma de executar o trabalho fica melhor definida, com resultados mais previsíveis e com menores riscos de acidentes e doenças.

Os profissionais das áreas de Segurança e Medicina do Trabalho têm sua missão facilitada, à medida que cada setor da empresa deve padronizar sua rotina de trabalho. Métodos, especificações, instruções ou outros documentos considerados importantes para a garantia da qualidade dos produtos e serviços precisam estar explicitados. Toda a documentação gerada na empresa deve ser controlada.

Com a implementação da ISO 9000, a tendência é o trabalho ficar tão organizado que as inspeções são reduzidas naturalmente. Os problemas (inclusive os riscos de acidentes e doenças) passam a ser identificados e corrigidos no próprio local ou setor de trabalho. A prevenção é enfatizada e passa a ser desenvolvida de forma rotineira em toda a empresa (finalmente!).

O mapa da mina: Para que o processo de implantação da ISO 9000 atinja os resultados esperados, é necessário que sua empresa: comece/conheça o que e como ela está trabalhando; tenha a alta direção envolvida/comprometida/ciente dos conceitos; forme um comitê diretor (com autoridade); treine os dirigentes e funcionários; comunique a todos seus planos de certificação; desenvolva projetos de implementação; prepare questões de auto-avaliação; elabore um manual da qualidade/documentação; estabeleça um sistema de auditoria interna; implemente um sistema eficaz de ações corretivas; reveja resultados; efetue avaliações independentes.

Um teste para sua empresa: Se, repentinamente, todos os funcionários de sua organização fossem substituídos, os novos trabalhadores poderiam continuar fazendo o produto com a mesma qualidade de antes? Esta é a pergunta que todo o auditor da ISO faz.