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Outubro/2002

Sistemas de Gestão ISO

A crítica de um especialista às atuais práticas de
avaliação e certificação da conformidade

Fraser Paterson
Especialista em Responsabilidade
Social Corporativa, Scott Wilson (Reino Unido)

O mercado de avaliação de conformidade do Reino Unido é indiscutivelmente o mais maduro do mundo. O Diretório de Organismos Certificadores de Terceira Parte Credenciados (Directory of Accredited Third Party Certification Bodies), que pode ser consultado no site do serviço de credenciamento nacional, UKAS (http://www.ukas.com/), lista 79 organismos certificadores capacitados para realizar auditorias de certificação de sistemas de gestão da qualidade ou de sistemas de gestão ambiental.
Alguns trabalham em âmbito internacional com um grande número de setores industriais e comerciais, enquanto outros ficam restritos a um campo mais modesto de atividades, tal como um único setor industrial ou uma base limitada de clientes. O UKAS também já credenciou uma série de organizações situadas no exterior, embora elas dificilmente venham a conduzir muitas avaliações na Inglaterra.
Em geral, os organismos certificadores credenciados prestam serviços satisfatórios às organizações clientes e outras partes envolvidas, naquilo que pode ser uma atividade difícil e exigente. A certificação baseada nas Normas para Sistemas de Gestão (NSGs) da ISO é amplamente reconhecida entre as empresas e, cada vez mais, também pelos clientes. Apesar disso, a opinião do usuário e, até mesmo, do público quanto à "marca" ISO continua divergente. (A certificação baseada nas NSGs da ISO identifica-se tanto com a ISO que o uso da palavra "marca" nesse contexto é, sem dúvida, justificável - embora as aspas nos lembrem de que a certificação é realizada independentemente da ISO, a qual não audita nem certifica organizações, nem controla os organismos que o fazem).
Nem todos os "organismos certificadores" são oficialmente credenciados pelo UKAS e, infelizmente, algumas dessas empresas se encontram envolvidas em práticas anti-éticas para as quais a Secretaria Geral da ISO voltou sua atenção, como, por exemplo, auxiliar na implantação do sistema de gestão juntamente com a concessão do certificado!
Além disso, a ênfase inicial dada à documentação do sistema pelas empresas, consultores e auditores, nos anos 80 e no início dos anos 90, resultou em sistemas de gestão da qualidade, principalmente, considerados burocráticos e ineficazes. Na verdade, muitas organizações buscavam a certificação porque era isso que deviam fazer, realizando apenas o mínimo necessário para passar e manter a certificação. Essa postura quanto à certificação tem persistido de tal forma que a opinião continua dividida com relação ao real valor da certificação baseada nas NSGs da ISO. Opiniões negativas semelhantes são vistas em outros países do mundo todo.
Atualmente, a ISO está pensando na possibilidade de criar uma norma sobre Responsabilidade Social Corporativa (RSC), para abordar a crescente preocupação dos consumidores com assuntos relevantes da cadeia de fornecimento, tais como o bem-estar dos funcionários, o comércio ético e a integridade nos negócios. Como será o desempenho do mercado de avaliação de conformidade nessa área de rápido crescimento e crucialmente importante para o comércio? Seria a integridade dos vários processos nacionais de credenciamento e avaliação de conformidade suficientemente consistente para suportar mais e mais exames minuciosos?

Tendo em mente tal preocupação, há uma série de áreas a serem ponderadas.

Há muitos organismos certificadores?

Pode-se dizer simplesmente que há muitas opções de organismos certificadores e, apesar de algumas fusões e falhas em âmbito nacional, os mecanismos de mercado não tiveram êxito em racionalizar o número total de organizações envolvidas.
No Reino Unido, isso se deve, em parte, a fatores como a falta de critérios organizacionais ou financeiros mínimos significativos para se implantar um organismo certificador. Embora até o menor organismo seja perfeitamente capaz de realizar tarefas, o que essa proliferação nos diz quanto ao setor de avaliação de conformidade no geral? É possível policiar bem cada organismo certificador?
Além dos principais organismos certificadores internacionais que atuam em todo o mundo, a maioria dos países possui agora seu(s) próprio(s) organismo(s) nacional(is) equivalente(s). Mas seriam todos eles necessários? Numa época de globalização e normalização, um número menor de organismos de avaliação - tal como uma única organização pan-européia para a União Européia - seria suficiente para produzir melhorias na coerência e integridade das avaliações de conformidade.
Evidentemente, isso iria depender do fato de o processo de credenciamento do país de origem ser suficientemente consistente. Qualquer falha em erradicar comportamentos anti-éticos no mercado doméstico produz ramificações em qualquer outro lugar. Por exemplo, se uma empresa importante quiser uma aprovação local, como poderá um organismo nacional de credenciamento garantir conformidade com normas éticas mais restritivas, quando se deparar com um "fato consumado"?
A própria ISO tem uma influência limitada sobre os organismos nacionais de credenciamento, o setor de avaliação de conformidade e as práticas de auditoria em geral. A responsabilidade pela implantação de normas, portanto, deve recair sobre as estruturas nacionais e os vários acordos multilaterais.

Os processos de credenciamento são transparentes?

Embora a certificação baseada nas normas ISO seja universalmente apresentada como uma declaração de integridade, o próprio processo de credenciamento muitas vezes carece de transparência.
Envolvido em mistério e confidencialidade, o princípio caveat emptor (comprador, cuidado!) ainda se aplica a qualquer um que esteja buscando a certificação baseada nas NSGs da ISO. A menos que você esteja "por dentro", é muito difícil obter uma visão objetiva da capacidade e situação dos vários organismos certificadores que poderiam ser selecionados para avaliar a conformidade do seu sistema de gestão. Como, então, tomar a decisão correta ao selecionar um organismo certificador?
Os sites dos organismos de credenciamento não o ajudarão necessariamente a esclarecer sua dúvida - por exemplo, os diretórios nacionais nem sempre apresentam as limitações quanto ao campo de atuação, nem mesmo identificam para quais setores industriais um organismo específico é aprovado. Pior, não há qualquer mecanismo simples que possa ser usado para se comparar as metodologias correspondentes, custos ou, talvez mais relevante ainda, os respectivos índices de aprovação/falha de auditoria das NSGs da ISO.
Uma pesquisa pode ser complexa já que, embora os custos sejam bastante semelhantes, organizações diferentes possuem métodos totalmente diferentes para avaliações iniciais e avaliações de acompanhamento (amostragem de várias unidades, contratos anuais ou trienais etc). Isso se torna ainda mais complicado quando vamos além dos limites nacionais e tentamos comparar os principais organismos internacionais com os organismos certificadores locais.
Talvez mais importante ainda seja o fato de que raramente há advertências claras quanto a implantações ordinárias e às mais indecorosas práticas! Quando existem advertências, geralmente elas são de natureza muito geral, alertando apenas para que os possíveis compradores certifiquem-se de que estão selecionando um organismo credenciado.

Os resultados das auditorias de credenciamento deveriam ser divulgados?

Se o processo de credenciamento se destina realmente a servir aos interesses da empresa e do público no geral, por que não publicar, pelo menos, um resumo dos relatórios das auditorias de credenciamento e/ou outros dados referentes ao desempenho de organismos certificadores? Aqueles que administram bem e com ética seus negócios de certificação não deveriam ter nada a temer, e os prováveis clientes, por sua vez, estariam mais informados para tomar uma decisão.
Somente aqueles que deixam de atender às normas exigidas devem ser publicamente expostos. Há um precedente para isso - a Agência Ambiental do Reino Unido, o Conselho de Segurança e Saúde e até mesmo alguns ministros do governo já estão pondo em prática uma política do tipo "reputação e humilhação" contra as empresas processadas ou empresas que deixam de atender às expectativas da sociedade. Em âmbito internacional, a OECD (Organization for Economic Cooperation and Development) possui um sistema para identificar empresas que participam de suborno e corrupção, sendo que os transgressores serão colocados na lista negra do Banco Mundial.
Uma ação positiva certamente restauraria a confiança do público e das empresas quanto à certificação baseada nas normas ISO - e quem sabe a própria ISO pudesse operar algo como uma "lista negra" online?

Avaliação + treinamento e consultoria = padrões duplos?

Como a maioria dos empreendimentos comerciais, os organismos certificadores têm procurado expandir suas atividades oferecendo um maior número de serviços, principalmente nas áreas de treinamento e consultoria. Evidentemente, existem as usuais "muralhas da China" e outros mecanismos semelhantes para proteger a integridade da avaliação de conformidade das NSGs da ISO. Mas seriam eles eficazes?
Essa é, sem dúvida, uma área nebulosa, existindo vários aspectos de possível preocupação:

  • Muitas vezes, o uso do logotipo do organismo certificador está tão arraigado nas campanhas publicitárias e na imagem do cliente que a dependência do cliente em relação ao organismo certificador e a incidência de relações a longo prazo aumentam. Poderiam essas "parcerias" manter a objetividade?
  • Clique no site de qualquer organismo certificador importante e dê uma olhada na certificação de segurança e saúde OHSAS 18001 (não é uma norma da ISO); em seguida, veja se ele oferece abertamente certificação, treinamento e consultoria - não indicaria isso um padrão duplo de comportamento?
  • O credenciamento da QS-9000 (norma de qualidade para a indústria automotiva) apresenta requisitos mais estritos para os organismos certificadores com relação a treinamento e consultoria do que aqueles que são impostos para a avaliação das NSGs da ISO - mesmo que, muitas vezes, os mesmos organismos certificadores estejam envolvidos em ambos os esquemas.
  • Os auditores empurram para os clientes os cursos de treinamento dos organismos certificadores, dando a entender que, com isso, a avaliação será mais simples. Algumas vezes, suas técnicas de venda são consideradas um tanto "agressivas", deixando as organizações-clientes com uma firme impressão de que os auditores recebem incentivos para vender serviços adicionais.
  • Quanto ao fornecimento de treinamento, há uma forte teoria de que ele deveria ser restringido somente a cursos abertos ou públicos. Dirigir cursos personalizados para uma única organização pode beirar a "consultoria", devido à sua ênfase nos problemas internos da empresa.

    Há muitos consultores e organizações de treinamento que fornecem os mesmos produtos dos organismos certificadores por honorários mais competitivos. Porém, as empresas-clientes continuam comprando treinamento e outros serviços de organismos certificadores, porque acreditam que a "lealdade do cliente" os ajudará a passar na auditoria de certificação posterior. Há ainda alguma dúvida de que muitos continuam buscando a certificação de NSGs da ISO como um "imposto" adicional ou como o custo inevitável para se entrar num mercado específico?
    Há também uma série de áreas em que os próprios organismos certificadores poderiam fazer algumas mudanças simples, como estas a seguir, para melhorar a forma como seus serviços são vistos.

  • Apesar de ser uma deficiência óbvia, poucos organismos certificadores possuem um código de ética publicado ou uma declaração de integridade que abranja todas as suas atividades. Um número ainda menor de organizações realiza auditorias éticas internas para determinar se suas políticas e alegações não são furadas. Da mesma forma, os códigos de conduta de auditores nem sempre são disponibilizados para o público.
  • Os protocolos de auditoria que adicionam mais requisitos ou refinam os requisitos práticos exigidos do auditado, que estão abaixo ou acima daqueles contidos na norma da ISO, são muitas vezes escondidos em documentos internos e, nem sempre, são claramente comunicados ao auditado antes das visitas à unidade, podendo resultar em desapontamento desnecessário por parte do cliente.
  • Pelo menos um organismo certificador internacional apresenta regras protocolares conflitantes referentes à avaliação do sistema de gestão da qualidade e do sistema de gestão ambiental (com relação a políticas locais específicas de clientes com várias unidades). Tais variações inexplicáveis apenas confundem os auditados que desejam integrar seus sistemas de gestão.

    Uma coisa é certa: os organismos certificadores raramente obtêm um feedback adequado sobre os serviços prestados e, portanto, não podem estar conscientes das opiniões de seus clientes. Os auditados apresentam seus argumentos aos auditores a fim de evitar "bagunçar o coreto" - é mais fácil responder positivamente aos comentários de um auditor do que arriscar uma observação quanto à não-conformidade. Pela mesma razão, os auditados também podem relutar em apresentar reclamações formais contra os auditores via organismos certificadores ou organismos nacionais de credenciamento. (Isso contrasta com a iniciativa da ISO em divulgar sua preocupação quanto às reclamações sobre práticas dúbias recebidas).
    Ao mesmo tempo, os organismos certificadores e seus auditores nem sempre podem apreciar o poder das constatações da auditoria. Eles raramente, ou nunca, oferecem conselhos diretos de consultoria, mas os comentários e sugestões dados são, freqüentemente, agarrados e seguidos pelo auditado, algumas vezes com resultados desastrosos. Muitas vezes, os sistemas de gestão são alterados para atender àquilo que o auditado acha que o auditor deseja, e não àquilo que é necessariamente a solução mais apropriada ou eficaz para a empresa.
    Evidentemente, essa consultoria indireta ou resultante, geralmente, não é culpa do auditor ou do organismo certificador - afinal, a responsabilidade última pelo sistema de gestão e por qualquer ação corretiva ou melhoria, para garantir sua adequação e eficácia, é do auditado. Mas como podemos garantir isso?
    Bem, uma das formas seria alinhar os Guias ISO/IEC sobre práticas de avaliação de conformidade - adotados na União Européia como série EN 45000 - e o processo de credenciamento com a evolução das normas para sistemas de gestão da ISO. Em outras palavras, os modelos ISO 9001:2000 e ISO 9004:2000 deveriam ser seguidos com as adaptações necessárias, para facilitar uma gestão mais eficaz dos processos de credenciamento e certificação, incluindo melhor comunicação com os clientes desses processos, melhor monitoramento de desempenho e maior satisfação dos clientes.
    Uma outra idéia interessante consiste em mudar obrigatoriamente de organismo certificador após alguns anos, a fim de garantir a objetividade do processo. A rotação de auditores individuais já está sendo usada para melhores resultados, como, por exemplo, com respeito a programas sociais e éticos e relatórios corporativos, sendo realizada por uma série de empresas que terceirizam parte de suas auditorias internas de sistemas de gestão da qualidade e ambiental - e essa pode ser uma opção melhor do que simplesmente mudar de organismo certificador a cada auditoria trienal. A competição entre auditores aumenta a qualidade do processo e dos seus resultados, enquanto os benefícios provenientes de certa familiaridade com a empresa do cliente são retidos. Seria esse o caminho futuro para a avaliação de conformidade?

    Conclusões

    Embora a maioria dos organismos certificadores credenciados e seus auditores já ofereça um serviço razoável, muita coisa pode ser feita para melhorar as opiniões divergentes do público quanto à avaliação de conformidade com as normas para sistemas de gestão da ISO.
    Algumas das questões levantadas neste artigo podem ser abordadas pelos organismos nacionais de credenciamento e pelos organismos certificadores, mas os problemas mais sérios terão de ser abordados coletivamente. A falta de um organismo único com autoridade para fazer isso é evidentemente um empecilho, e simplesmente banir os organismos certificadores de certas atividades comerciais seria algo difícil de se colocar em prática. Um verdadeiro avanço seria apresentar critérios mais claros quanto àquilo que é aceitável para o credenciamento nacional e internacional, mas fica aqui a dúvida se realmente teremos o desejo coletivo para alcançar padrões mais altos.
    Certamente, se a ISO decidir ir em frente com a norma de Responsabilidade Social, ela só terá êxito se aqueles envolvidos na avaliação dessa norma e suas práticas de auditoria estiverem acima de qualquer censura.

    Leia também: Esclarecimentos do QSP sobre "Conflito de Interesses".